O discurso a seguir foi feito por Russell Means em julho de 1980, antes de várias milhares de pessoas vindas do mundo inteiro se reunirem para o Black Hills International Survival Gathering [Encontro Internacional de Sobrevivência das Black Hills]. Esse é o discurso mais famoso de Russell Means.Membro da tribo Oglala Lakota, ele é talvez a personalidade mais proeminente no Movimento Indígena Estadunidense, começando com a ocupação do Wounded Knee em 1973. Ele também teve uma carreira como ator começando com seu papel como Chingachgook no filme “O Último dos Moicanos” [Last of the Mohicans]. Ele faleceu em 22 de outubro de 2012, aos 72 anos.
Estou mais preocupado com o povo indígena estadunidense, com estudantes e outros que começaram a ser absorvidos pelo mundo branco por meio das universidades e outras instituições.
Mas, ainda assim, há um tipo marginal de preocupação. É bastante possível crescer como um pele vermelha tendo uma mentalidade de branco; e se essa for uma escolha pessoal, que seja, então; mas eu não tenho utilidade pra essas pessoas. Isso é parte do processo de genocídio cultural sendo lançado pelos europeus contra os povos indígenas estadunidenses atuais Minha preocupação é para com aqueles índios americanos que escolhem resistir ao genocídio, mas que podem estar confusos sobre como proceder.
O processo começou muito antes. Newton, por exemplo, “revolucionou” a Física e as chamadas Ciências Naturais, ao reduzir o universo físico a uma equação matemática linear. Descartes fez a mesma coisa com a cultura. John Locke fez o mesmo com a política, Adam Smith fez o mesmo com a economia. Cada um desses “pensadores” tomou uma peça da espiritualidade da existência humana e a converteu num código, numa abstração.
Eles continuaram de onde o Cristianismo havia parado: eles “secularizaram” a religião cristã, como os escolásticos gostam de dizer – e, ao fazer isso, tornaram a Europa mais apta e pronta para agir como uma cultura expansionista. Cada uma dessas revoluções intelectuais serviu para abstrair ainda mais a mentalidade europeia, para remover a complexidade maravilhosa e a espiritualidade do universo, e substituir tudo isso por sequências lógicas; um, dois, três… Resposta!
Hegel e Marx eram herdeiros do pensamento de Newton, Descartes, Locke e Smith. Hegel finalizou o processo de secularização da teologia – e isso posto nos termos dele mesmo -, ele secularizou o pensamento religioso por meio do qual a Europa compreendia o Universo. Então, Marx colocou a filosofia de Hegel em termos de “materialismo”, que é o mesmo que declarar que Marx “desespiritualizou” o trabalho de Hegel. Novamente: isso é dito nos termos do próprio Marx.
E isso agora é visto como o potencial revolucionário futuro da Europa. Os europeus podem enxergar isso como algo revolucionário, mas os índios americanos veem isso simplesmente como mais do mesmo velho conflito europeu entre o ser e o ganhar. As raízes intelectuais de uma nova forma marxista de imperialismo europeu residem nas conexões de Marx – e de seus seguidores – com a tradição de Newton, Hegel e outros.
A tradição europeia materialista de “desespiritualizar” o universo é muito semelhante ao processo mental que desumaniza outra pessoa. E quem parece ser melhor em desumanizar outros povos? E por quê? Soldados que presenciaram muitos combates aprendem a fazer isso ao inimigo antes de voltar ao combate. Assassinos fazem isso antes de cometer homicídio. Guardas nazistas das SS faziam isso para lidar com prisioneiros de campos de concentração. Policiais fazem isso. Líderes corporativos fazem isso com os trabalhadores que eles enviam para as minas de urânio e siderúrgicas. Políticos fazem isso com todo mundo à vista. E o que esse processo tem em comum com cada grupo que pratica essa desumanização é que ele torna justificável matar e destruir outros povos. Um dos mandamentos cristãos diz: “Não matarás”, ao menos não os humanos; então, o truque é converter mentalmente as vítimas em não-humanos. Então, você pode proclamar a violação do seu próprio mandamento como uma virtude.
Em termos de desespiritualização do universo, o processo mental atua para que o ato de destruir o planeta se torne virtuoso. Termos como progresso e desenvolvimento são usados como disfarces, do mesmo modo como os termos vitória e liberdade são usados para justificar a carnificina no processo de desumanização. Por exemplo: um especulador de imóveis pode se referir a “desenvolvimento” de um pedaço de terreno como a abertura de uma pedreira de cascalho; desenvolvimento, aqui, significa destruição total e permanente, com a remoção da própria terra. Mas a lógica europeia ganhou algumas toneladas de cascalho com as quais mais terra pode ser “desenvolvida” por meio da construção de leitos de estrada. No final das contas, o universo inteiro é aberto – na visão europeia – a esse tipo de insanidade.
Mais importante aqui, talvez, é o fato de que os europeus não tem um sentimento de perda em tudo isso. No final das contas, seus filósofos desespiritualizaram a realidade; então, não há satisfação (para eles) a ser obtida por meio da observação da maravilha de uma montanha ou de um lago, ou da existência de um povo. Não: satisfação é medida em termos de ganho material. Ento, a montanha se torna mero cascalho, e o lago se torna mera fonte pra uma fábrica de refrigerante, e o povo ao redor é arregimentado aos centros de doutrinação que os europeus gostam de chamar de escolas.
Mas, cada nova peça daquele “progresso” só afasta mais o mundo real. Tome o combustível para as máquinas industriais como exemplo. Há pouco mais de dois séculos, quase todos usavam madeira – um item renovável, natural – como combustível para as necessidades humanas mais essenciais, para cozinhar e se aquecer. Depois, veio a Revolução Industrial e o carvão se tornou o combustível dominante, conforme a produção se tornou o imperativo social para a Europa. A poluição começou a se tornar um problema nas cidades, e a terra foi rasgada, aberta para fornecer carvão, enquanto que a madeira havia sempre sido simplesmente tomada ou cortada sem grandes custos ao ambiente.
Mais tarde, o petróleo se tornou o principal combustível, conforme a tecnologia de produção foi aperfeiçoada por uma série de “revoluções” científicas. A poluição aumentou drasticamente, e ninguém sequer sabia que custos ambientas bombear todo aquele petróleo pra fora do solo seriam causados a longo prazo. Agora, há uma “crise energética”, e o urânio está se transformando no combustível dominante.
Ao menos os capitalistas podem se apoiar no desenvolvimento do urânio como combustível só até o nível no qual isso mostre um bom lucro. É a ética deles, e talvez eles comprem algum tempo. Os marxistas, por outro lado, só podem se escorar no desenvolvimento do urânio como combustível fazendo-o o mais rápido possível, simplesmente porque é o combustível mais “eficiente” disponível para a produção. Essa é a ética deles, e não consigo enxergar onde isso é preferível. Como eu disse, O marxismo está bem no meio da tradição europeia. É a mesma velha canção.
Existe uma regra que pode ser aplicada aqui. Não se pode julgar a verdadeira natureza de uma doutrina revolucionária europeia com base nas mudanças que se propõe fazer dentro da estrutura de poder e da sociedade europeias. Você só pode julgá-la pelos efeitos que ela terá sobre os povos não-europeus. Isto porque todas as revoluções na história europeia têm servido para reforçar as tendências e as capacidades da Europa de exportar a destruição para outros povos, para outras culturas e para o próprio meio ambiente. Eu desafio alguém a apontar um exemplo onde isso não seja verdade.
Então, nós, como índios americanos, somos convidados a acreditar que uma “nova” doutrina revolucionária europeia como o marxismo vai reverter os efeitos negativos da história europeia sentidos nós. As relações de poder europeias devem ser ajustadas mais uma vez, e se supõe que isso vai tornar as coisas melhores para todos nós. Mas o que isto significa realmente?
Agora mesmo, nós, que moramos na Reserva Pine Ridge, vivemos naquilo que a sociedade branca designou como “Área de Sacrifício Nacional”. O que isto significa é que nós temos muitos depósitos de urânio por aqui, e a cultura branca (não nós) precisa deste urânio como material para a produção de energia. A maneira mais barata e mais eficaz para a indústria extrair e lidar com o processamento deste urânio é despejando os resíduos de subprodutos aqui, nos locais de escavação. Aqui mesmo onde nós vivemos.
Este resíduo é radioativo e tornará a região inteira inabitável para sempre. Isso é considerado, pelo setor e pela sociedade branca que criou essa indústria, como um preço “aceitável” a se pagar pelo desenvolvimento dos recursos energéticos. Ao longo desse trajeto, eles também planejam drenar o lençol freático sob esta parte de Dakota do Sul, como parte do processo industrial, de modo que a região se torne duplamente inabitável. O mesmo tipo de coisa está acontecendo na terra dos Navajo e dos Hopi, na terra do Norte dos Cheyenne e dos Crow, e em outros lugares também. Cerca de 30% do carvão no Ocidente e metade dos depósitos de urânio nos Estados Unidos estão concentrados nessa reserva; então, não há nenhuma maneira pela qual isso possa ser considerado como uma questão menor.
Nós estamos nos opondo à ideia de sermos transformados numa Área Nacional de Sacrifício. Etamos resistindo ao ato de sermos transformados num povo de sacrifício nacional. Os custos desse processo industrial, para nós, não são aceitáveis. É genocídio escavar urânio aqui e drenar o lençol freático – nem mais, nem menos.
O marxismo revolucionário, assim como a sociedade industrial em outras formas, procura “racionalizar” todas as pessoas em relação à indústria – indústria máxima, produção máxima. É uma doutrina que despreza a tradição espiritual indígena americana, nossas culturas, nossas vidas. O próprio Marx nos chamou de “pré-capitalistas” e “primitivos”. Pré-capitalista simplesmente significa que, em sua opinião, acabaríamos descobrindo o capitalismo e nos tornando capitalistas; temos sido sempre tratados como “economicamente retardados” em termos marxistas.
Acho que há um problema com a linguagem aqui.Cristãos, capitalistas, marxistas,todos eles foram revolucionários em suas próprias mentes, mas nenhum deles realmente significa revolução.O que eles realmente querem dizer é continuação.Fazem o que fazem para que a cultura europeia possa continuar a existir e desenvolver-se de acordo com as suas necessidades.
Então, para que possamos realmente unir forças com o marxismo, nós, índios americanos, teríamos que aceitar o sacrifício nacional de nossa pátria; teríamos de cometer suicídio cultural e tornar-nos industrializados e europeizados.
Nesse ponto, eu tenho que parar e me perguntar se estou sendo duro demais. O marxismo tem algo de histórico. Essa história confirma minhas observações? Eu olho para o processo de industrialização na União Soviética, construído desde 1920, e vejo que esses marxistas fizeram o que a Revolução Industrial Inglesa levou 300 anos para fazer: os marxistas fizeram tudo isso em 60 anos.
Vejo que o território da URSS costumava conter um número de povos tribais, povos que foram esmagados para dar lugar às fábricas.
Existe outra maneira. Há a maneira tradicional dos lakota e as maneiras dos povos indígenas americanos. É a maneira com a qual se sabe que os seres humanos não têm o direito de degradar a Mãe Terra; que existem forças além de tudo o que a mente europeia concebeu, que os seres humanos devem estar em harmonia com todas as relações ou as relações acabarão por eliminar a desarmonia.
Mas a racionalidade é uma maldição, pois pode levar os seres humanos a esquecer a ordem natural das coisas, dum modo que as outras criaturas não fazem. Um lobo nunca esquece seu lugar na ordem natural. Os índios americanos podem esquecer. Os europeus quase sempre o fazem. Rezamos nosso agradecimento aos veados, às nossas relações, por nos permitirem comer a sua carne; os europeus simplesmente tomam a carne como certa e consideram os cervos como inferiores. Afinal, os europeus se consideram divinos em seu racionalismo e ciência. Deus é o Ser Supremo; todo o resto deve ser inferior.
Índios americanos têm tentado explicar isso aos europeus há séculos. Mas, como eu disse anteriormente, os europeus se provaram incapazes de ouvir. A ordem natural ganhará, e os infratores morrerão, da mesma maneira que os cervos morrem quando ofendem a harmonia ao sobrepujar uma dada região. É apenas uma questão de tempo até que aquilo que os europeus chamam de “uma grande catástrofe de proporções globais” aconteça.
Os índios americanos ainda estão em contato com essas realidades – as profecias, as tradições de nossos ancestrais. Aprendemos com os anciãos, com a natureza, com os poderes. E, quando a catástrofe acabar, nós, os povos indígenas americanos, ainda estaremos aqui para habitar o hemisfério. Eu não me importo se for apenas um punhado vivendo no alto dos Andes. Os índios americanos sobreviverão; a harmonia será restabelecida. Isso é revolução.
Neste ponto, talvez eu deva ser muito claro sobre outro assunto, que já deve estar esclarecido – como resultado do que eu disse. Mas na atualidade; então, eu quero martelar esse ponto. Quando eu uso o termo europeu, não estou me referindo a uma cor de pele ou a uma estrutura genética particular. O que estou a me referir é uma mentalidade, uma cosmovisão que é um produto do desenvolvimento da cultura europeia. As pessoas não são geneticamente codificadas para manter essa visão; elas são aculturadas a fim de mantê-la. O mesmo também é verdade para os índios americanos ou para os membros de qualquer cultura.
É possível para um índio americano compartilhar dos valores europeus, duma cosmovisão europeia. Temos um termo para designar essas pessoas; nós chamamos-lhes de “maçãs” – vermelhas na parte externa (genética) e brancas no interior (seus valores). Outros grupos têm termos semelhantes: os negros têm seus “oreos”; os hispânicos têm seus “cocos”, e assim por diante. E, como eu disse antes, há exceções à norma branca: pessoas que são brancas no exterior, mas que não são brancas no interior. Não sei ao certo qual termo deve ser aplicado a elas, a não ser o de “seres humanos”.
O que estou expondo aqui não é uma proposição racial, mas sim uma proposição cultural. Aqueles que, em última instância, defendem constantemente as realidades da cultura europeia e seu industrialismo são meus inimigos. Aqueles que resistem, que lutam contra essas coisas, são meus aliados, os aliados dos índios americanos. E eu não dou a mínima para como se chama a cor da sua pele. Caucasiano é o termo branco para a raça branca: europeu é um termo que eu oponho a esse.
Os comunistas vietnamitas não são exatamente o que você pode considerar como caucasianos em termos genéticos, mas, agora, eles estão agindo mentalmente como europeus. O mesmo vale para ps comunistas chineses, para os capitalistas japoneses ou os católicos bantu, ou para Peter “MacDollarna Reserva Navajo, ou para Dickie Wilson aqui em Pine Ridge. Não há racismo envolvido nisso, apenas um reconhecimento da mente e do espírito que compõem a cultura.
Em termos marxistas, suponho que sou um “nacionalista cultural”. Eu trabalho primeiro com o meu povo, o povo tradicional lakota, porque temos uma visão de mundo comum e compartilhamos duma luta imediata. Além disso, eu trabalho com outros povos indígenas americanos tradicionais e novamente, por causa de uma certa uniformidade na cosmovisão e na forma de luta entre esses povos. Além disso, eu trabalho com qualquer um que tenha experimentado a opressão colonial da Europa e que resista à sua totalidade cultural e industrial. Obviamente, isso inclui os caucasianos genéticos que lutam para resistir às normas dominantes da cultura europeia. Os irlandeses e os bascos vêm imediatamente à mente, mas há muitos outros.
O branco é uma das cores sagradas dos povos de Lakota – vermelho, amarelo, branco e preto. As quatro direções. As quatro estações. Os quatro períodos de vida e envelhecimento. As quatro raças da humanidade. Misture o vermelho, amarelo, branco e preto juntos e você fica marrom, a cor da quinta corrida. Este é um ordenamento natural das coisas. Parece natural, portanto, trabalhar com todas as raças, cada uma com seu próprio significado, identidade e mensagem.Mas há um comportamento peculiar entre a maioria dos caucasianos. Assim que me torno crítico da Europa e de seu impacto sobre outras culturas, eles tomam a defensiva. Começam a se defender.
Mas eu não estou atacando-os pessoalmente; estou atacando a Europa. Ao personalizar as minhas observações sobre a Europa, elas personalizam a cultura europeia, identificando-se com ela. Defendendo-se neste contexto, eles estão finalmente defendendo a cultura da morte. Esta é uma confusão que deve ser superada, e deve ser superada rapidamente. Nenhum de nós tem energia para desperdiçar com essas lutas falsas.
Os caucasianos têm uma visão muito mais positiva para oferecer à humanidade do que a da cultura europeia. Eu acredito nisso. Mas, para alcançar essa visão, é preciso que os caucasianos saiam da cultura europeia – ao lado do resto da humanidade – para ver a Europa pelo que ela é e por aquilo que ela faz.
Apegar-se ao capitalismo e ao marxismo e todos os outros “ismos” é simplesmente permanecer dentro da cultura europeia. Não há como evitar esse fato básico. Como fato, isso constitui uma escolha. Entenda que a escolha é baseada na cultura, não na raça. Entenda que escolher a cultura de industrialismo europeu é escolher ser meu inimigo. E entenda que a escolha é sua, não minha.
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