A LIBERDADE COMO PRIMEIRO E ÚLTIMO VALOR

Por Augusto de Franco

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A liberdade é o principal – o primeiro e último – valor da humanidade.

Dizer que a liberdade é o principal valor da vida pública é compreensível. Os democratas, como liberais que são, o dizem. Agora, dizer que a liberdade é o primeiro e o último valor da humanidade, isso não é nada trivial.

Em outras palavras, equivale a afirmar que a liberdade não é para alguma coisa e sim que ela é a coisa-em-si, o fim, a finalidade, o sentido. Ou seja, a liberdade não é funcional para a igualdade e nem meio para a fraternidade.

Se a humanidade, quando consumada, passar a ser a designação de um super-organismo humano (atenção: humano, não sobre-humano), como um simbionte social, mesmo assim, ela, a liberdade, continuará sendo o principal valor, o primeiro porque a constituiu como tal (em prefiguração) e o último porquanto (em consumação) a libertou de todos os condicionamentos. Quando não houver mais nada que precise ser feito, o que restará é a liberdade. A liberdade consiste em fazer o desnecessário.

A liberdade é o último valor porque ou a humanidade poderá ser infiel à sua origem e se tornar completamente independente da trajetória que a gerou, ou não haverá humanidade (e, consequentemente, liberdade).

A humanidade não é o resultado de nenhuma epigênese, de nenhuma evolução. Aconteceu por acaso, sem que houvesse um desenvolvimento regido por uma lei (imanente), ou consonante com uma ordem cósmica pregressa. Acaso significa que não pode ter havido uma criação, nem mesmo emanação de alguma potência (transcendente). Se há evolução ou criação, não pode haver liberdade. Outra coisa é dizer que os humanos são livres para crer no que quiserem: numa ordem natural (explicada pela ciência), histórica (descoberta pela filosofia) ou sobrenatural (afirmada pela religião). Mas se há uma espiritualidade terrestre – humana, não sobre-humana – ela em nada poderá se diferenciar da liberdade.

As ideias de “liberdade negativa” (Isaiah Berlin) e de “sociedade aberta” (Karl Popper) são preciosas para os democratas. Mas não dizem tudo sobre as dimensões mais profundas da liberdade: a liberdade de ser infiel à sua origem (quer dizer, a de ser livre de qualquer passado, de qualquer path-dependence) e a liberdade de não ter propósito, de não ter rumo (quer dizer, a de ser livre de qualquer futuro, de qualquer utopia e, a rigor, de qualquer projeto).

Passado e futuro são formas de narrar o presente (que é só o que existe: o mundo como conjunto co-presente de eventos). Estamos falando, portanto, da liberdade em relação às narrativas, ou seja, ao que se chama de história e aos projetos de cavar sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão. Tanto as tentativas de modificar o passado para predeterminar um caminho para o futuro, quanto as tentativas de antever o futuro para alterar o passado (e, a partir daí, predeterminar então um novo caminho para o futuro), são operações para restringir a liberdade. Se há liberdade, não pode haver caminho (e vice-versa).

O fluxo interativo da convivência social é composto por linhas temporais possíveis, não determináveis ex ante à interação. Escolher uma linha particular significa eliminar as outras (e toda eliminação de conexões – mesmo temporais – resulta em desliberdade). Por isso o passado e o futuro têm de continuar sendo incertos. Afirmo que, sem essa incerteza, não pode haver liberdade.

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