Ricardo Rosas
A recente onda dos coletivos artísticos e ativistas (ou "artivistas")
no Brasil tem chamado a atenção da mídia mainstream para um fenômeno
de proporções bem maiores e razões mais profundas que a vã filosofia
dos cadernos culturais poderia imaginar. Pouco compreendida, a
dinâmica destas articulações chega assim maquiada com um verniz
espetaculoso e superficial que, ao que parece, tenta esconder o
pano de fundo crítico e instrumental desses grupos. Muitas vezes
passageiros como um casual flashmob, outras vezes organizados e
duradouros como uma associação, tais ajuntamentos são na verdade
indícios de uma mutação maior que está se dando tanto na esfera
tecnológica quanto na social.
Coletivos, em si, nada têm de novo. Já são uma tradição na arte, na
literatura, que percorreu todo o século vinte, aqui como lá fora.
Segundo o historiador de coletivos artísticos Alan Moore, seu ponto
de partida foi logo após a Revolução Francesa, com os estudantes de
Jacques-Louis David, os barbados, ou " Barbu ", que formaram uma
comunidade criativa que viria a ser chamada de Boêmia, espécie de
nação imaginária espiritual de artistas -cujo nome provinha de uma
nação de verdade e geraria a idealização do estilo de vida "boêmio"-,
compondo um contraponto à academia oficial.
Desde então, o fenômeno tem ocasionalmente se repetido ao longo da
história da arte, como o Arts and Crafts na Inglaterra vitoriana,
dadaístas, situacionistas, Fluxus, numa lista quase infinita de
grupos dos mais diversos tipos.
No Brasil, eles remontam ao século dezenove, com o grupo dos românticos
em São Paulo, os grupelhos de poetas simbolistas, os modernistas da
década de 1920, o grupo antropofágico, os concretistas nos anos 1950,
o coletivo Rex de artistas na década seguinte, 3Nós3 e Manga Rosa na
década de 1970, Tupi Não Dá, ou os mais recentes Neo-Tao e Mico,
entre inúmeros outros.
O que diferencia a atual voga de movimentações coletivas no Brasil
são o caráter político de boa parte delas, assim como o uso que muitas
fazem da internet, seja via listas de discussão, websites, fotologs e
blogs ou simplesmente comunicação e ações planejadas por e-mail.
Na Europa e nos EUA, a fusão de arte e política já estava presente nos
dadaístas e surrealistas, e representou o ponto fundamental dos
situacionistas no pós-guerra, e desde então essa mescla tem se dado
em vários grupos que atuam na fronteira ativismo/arte, como o
Arte & Linguagem, Art Workers Coalition, Black Mask, neoístas,
Gran Fury, Group Material, PAD/D, Guerrilla Girls, ou os mais recentes
Luther Blissett Project, RTmark, Etoy, Critical Art Ensemble, boa
parte destes últimos atuando diretamente com alta tecnologia, no que
se tem atualmente denominado de mídia tática. Se essa junção sempre
esteve presente lá fora, o atual beco sem saída do neoliberalismo
parece haver despertado a consciência de vários grupos no Brasil,
que passaram a criar fora das instituições estabelecidas com
performances, intervenções urbanas, festas, tortadas, filmagens in
loco de protestos e manifestações, ocupações, trabalhos com
movimentos sociais, culture jamming e ativismo de mídia.
À diferença dos coletivos high tech europeus e americanos, os
coletivos brasileiros atuam nos interstícios das práticas tradicionais
da cultura instituída, em ações até agora de um víes mais low tech.
Mesmo assim, a maioria deles surgem ou agem graças à internet.
Alguns, como o Expressão Sarcástica, Vitoriamario, Poro, TEMP, BaseV,
ou Cocadaboa, possuem seus próprios sites.
Outros, como o CORO, um grupo que pretende mapear todos os coletivos em
ação no Brasil, ou a Universidade do Fora, entre outros, funcionam com
lista de discussão.
Blogs também hospedam grupos com identidade virtual à Luther Blissett,
como o Ari Almeida ou Timóteo Pinto, enquanto os fotologs tem servido
como meio de divulgação de coletivos como o Radioatividade, ou grupos
do stencil e do sticker (adesivo) como Faca, Coletivo Rua, SHN, entre
dezenas de outros. Se a tecnologia não é fundamento básico destes grupos
para ações tipo hacktivismo, net arte ou similares, é por meio dela,
contudo, que se dá a dinâmica de ação e propagação das atividades destes
grupos na vida real. Pois uma palavra-chave de todos estes coletivos é
a colaboração.
Espécie de buzzword atualmente, a colaboração, bem como termos irmãos
como livre cooperação, comunidade, interação e rede são senhas para uma
transformação que está se dando em escala global. Foi a colaboração que
permitiu o surgimento de movimentos massivos como os protestos
"anti-globalização", bem como a organização de festas-protesto como
as do Reclaim the Streets, ou ainda a publicação aberta da rede
Indymedia.
A divisão de tarefas, o compartilhamento de valores e a liderança
coletiva caracterizam em grande parte essas organizações cuja tradução
mais exata é a filosofia do open source.
Inicialmente restrita ao círculo de programadores e geeks, a idéia da
criação coletiva e distribuída que caracteriza as comunidades Linux e
software livre tem virado fonte de inspiração para grupos os mais
diversos que estão se voltando para este modo de trabalho como um
modelo viável e menos restritivo, não-hierárquico. Tive recentemente a
oportunidade de participar de uma conferência sobre o tema na
universidade de Buffalo, NY. Chamada " Redes, arte e colaboração "
(" Networks, art and collaboration "), e organizada pelo artista e
professor de novas mídias Trebor Scholz e por Geert Lovink, net
crítico e teórico de mídia tática, a conferência teve o mérito de
reunir diversos ativistas, teóricos e artistas que trabalham
colaborativamente, e pautou por abordar diversas facetas da questão,
como o conflito com os interesses financeiros das grandes instituições
do capitalismo, os conflitos internos dentro da dinâmica coletiva,
ou as diversas iniciativas em áreas que vão das artes à educação,
da criação em rede à distribuição livre de conhecimento.
O tema é quente o bastante para gerar semanas de debates acalorados,
mas aqui se limitou a um final de semana onde se sucederam mesas
abertas, performances e apresentações de projetos.
Teóricos e historiadores de arte ativista em coletivos como Gregory
Sholette, Alan Moore e Brian Holmes, grupos como Critical Art Ensemble
e Guerrilla Girls, net críticos como McKenzie Wark, ou o teórico
maior da colaboração online, o alemão Cristoph Spehr, estiveram
presentes.
Spehr, autor do cultuado livro Die Aliens sind unter uns!
("Os alienígenas estão entre nós! "), tem servido como o melhor
tradutor da mecânica funcional do código aberto (open source) para o
campo da política, da organização social, e da economia. Entre
alguns pontos fundamentais, Spehr defende a noção de que as relações
devem se basear na liberdade e igualdade de uns para com os outros e
com a cooperação; que regras devem ser estabelecidas, negociadas
(e cumpridas) para que a cooperação funcione; que conflitos que
surjam ao longo dessas negociações podem construir o respeito mútuo,
a independência na cooperação e nos tornar mais fortes; e que
organização, lealdade para com as pessoas, não com as instituições,
e auto-confiança, são elementos essenciais. Em seu livro, num
estilo que remixa ensaio e ficção científica, grupos colaborativos
independentes e autônomos seriam os grandes monstros que ameaçam o
atual estágio do neo-liberalismo corporativo. Espécie de alienígenas
no meio da lógica capitalista da competitividade e das redes de
"cooperação forçada", os coletivos colaborativos autônomos atuam
numa esfera que transcende a mercantilização e podem efetuar uma troca
auto-sustentável que, se aplicada em larga escala - o que para muitos
é pura utopia -, correria o risco de transformar totalmente a paisagem
social, econômica e política do planeta.
Comunismo open source? Talvez, pelo menos é o que Spehr acredita, com
um otimismo desafiante, o mesmo que o faz organizar a conferência anual
"Out of This World” em Bremen, onde junta programadores, ativistas,
escritores de ficção científica, filósofos e teóricos para debater a
aplicação do código aberto à transformação social visando o futuro.
Por outro lado, o capitalismo há muito já aprendeu a trabalhar em rede.
O fenômeno dos coletivos de livre cooperação na esfera
artístico-ativista encontra seu paralelo nos grupos criativos de
trabalho descentralizado e flexível produzindo para o mercado.
Como diz o teórico Brian Holmes num ensaio sobre a questão, esse
tipo de organização característica da produção imaterial no atual
estágio capitalista do pós-fordismo, seria o da "personalidade
flexível", adaptativa e versátil em sua atuação profissional, a
qual, obviamente não excluiria sob hipótese alguma a competição
ou o controle pela vigilância, ainda que à distância. Para
combatê-la, só um ativismo "flexível" que, mesmo por sua
característica cooperativa e autônoma, se adaptasse à configuração
de um mundo cada vez mais baseado em redes, distribuído em setores
terceirizados, "aparentemente" independentes.
Em se tratando da internet, o crescente uso das redes de
compartilhamento peer-to-peer, weblogs, software livre,
listas de discussão, publicações abertas tipo slashdot,
wiki ou Indymedia, as bibliotecas online de livre acesso,
foruns e todas as outras formas operacionais das comunidades
na rede estariam abrindo o caminho para essa transformação
pelo trabalho colaborativo que os ativistas e coletivos de
hoje usam como tática de resistência e cuja disseminação
compartilhada podem ter consequências ainda imprevisíveis.
Como diz Geert Lovink em seu último livro, My First Recession, a
cultura da internet "é um meio global no qual redes sociais são
moldadas por uma mistura de regras implícitas, redes informais,
conhecimento, convenções e rituais coletivos". Procurar entender
o atual fenômeno dos coletivos ignorando essa dinâmica de código
e cultura, ou seja, modus operandi, instrumentos, ativismos e
lutas democráticas face a uma crescente repressão na guerra global
do capital, equivaleria a esquecer por completo a senha na hora de
logar.
Esqueceu sua senha?
Curtir isso:
Curtir Carregando...
Relacionado
Comentários